O Judiciário, a inteligência artificial e o paradoxo: se der certo, deu errado

Mayer Fischer
By Mayer Fischer

A presença crescente de tecnologias automatizadas no universo jurídico tem provocado reflexões complexas sobre os limites da racionalidade institucional. Em vez de fortalecer o sistema, como muitos apregoam, o uso desmedido dessas ferramentas pode gerar um efeito inverso, minando a credibilidade de decisões e colocando em xeque a própria ideia de justiça. A promessa de inovação esconde um paradoxo perigoso: quanto mais se automatiza o processo decisório, mais distante ele pode se tornar da compreensão humana e da sensibilidade jurídica.

O discurso otimista em torno de ferramentas automatizadas frequentemente ignora os riscos de substituição da argumentação crítica por respostas calculadas. Quando se atribui a um sistema programado a tarefa de interpretar fatos e normas, há um esvaziamento do papel humano, do juiz que pondera, do advogado que contextualiza, do promotor que constrói teses com base em nuances. O Direito, por sua natureza, é feito de exceções, ambiguidades e contradições. Reduzir isso a fórmulas pode parecer eficiente, mas compromete a integridade do sistema.

A ideia de vanguarda tecnológica que domina certos setores do sistema judiciário nacional revela mais uma ilusão de modernidade do que uma efetiva compreensão do que é justiça. Enquanto em outras partes do mundo as experiências com esse tipo de tecnologia são conduzidas com prudência, aqui há uma euforia quase dogmática. O que parece ser avanço pode, na verdade, escancarar uma nova forma de alienação institucional, onde decisões são tomadas sem alma e sem escuta.

Há também um deslocamento perigoso de responsabilidades. Se uma decisão automatizada resulta em erro ou em injustiça, quem responde por ela? O programador? O tribunal que adotou o sistema? O servidor que alimentou os dados? A cadeia de comando se dissolve, e com ela se dissolve a noção de accountability. A justiça não pode ser terceirizada para uma entidade algorítmica, ainda que se tente pintar isso como uma solução de eficiência.

Outro ponto de tensão está na crença de que esses sistemas são neutros, imparciais e objetivos. Essa é uma ilusão tecnocrática que mascara o fato de que toda tecnologia reflete a mentalidade de quem a criou e os interesses de quem a opera. A linguagem jurídica é feita de interpretações e sentidos, não de comandos exatos. Transferir a função hermenêutica para um sistema matemático é abdicar da responsabilidade de pensar criticamente.

Em um cenário onde o tempo e os números passam a valer mais que a argumentação e o contraditório, o sistema deixa de ser um espaço de justiça para se tornar uma fábrica de sentenças. A lógica do resultado imediato se sobrepõe ao processo reflexivo, e isso gera uma corrosão lenta e silenciosa da legitimidade. Um Judiciário que opera por atalhos tecnológicos perde o vínculo com o cidadão e com os princípios que o sustentam.

A questão central não é ser contra a inovação, mas sim entender que ela precisa estar submetida aos valores fundamentais da democracia. Ferramentas digitais devem auxiliar, nunca substituir, a função humana de julgar. O risco está em transformar exceções em padrões, reduzir a diversidade do humano a estatísticas previsíveis e matar o espírito do Direito em nome da suposta racionalidade tecnológica.

Por fim, é preciso dizer que, se o uso dessas ferramentas for considerado um sucesso, talvez o próprio conceito de justiça já tenha sido pervertido. O verdadeiro sucesso está na capacidade de ouvir, refletir e julgar com prudência, não em aplicar soluções pré-fabricadas. Quando a justiça vira produto de automação, o sistema pode funcionar, mas deixa de ser justo. E aí, paradoxalmente, o que parece ter dado certo, na verdade, deu muito errado.

Autor : Mayer Fischer

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