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‘Vai piorar todo ano’, diz especialista sobre estragos da chuva em BH

“Vai piorar todo ano”. A frase, dita pelo urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Roberto Andrés, traz à tona uma previsão que fatalmente deverá se cumprir, segundo ele, caso soluções de verdade não sejam tomadas em Belo Horizonte para conter os efeitos da chuva. Nessa quarta-feira (7), durante uma tempestade de cerca de três horas, vias foram inundadas, carros e uma criança foram arrastados pela correnteza, mais de 80 pessoas ficaram desalojadas, entre outros reflexos do aguaceiro. Especialistas ouvidos pela reportagem reforçam o coro e afirmam que cenas como essas têm sido vistas há anos e que estão fadadas a se intensificarem diante de ações muitas vezes equivocadas para barrar os reflexos da chuva.

Algumas das soluções para o problema, segundo especialistas, são utilizar sistemas de drenagem difusa, redução das ocupações em beiras de córregos – que continuarão enchendo – , construção de parques e praças na capital que absorvam a água da chuva, entre outros, o que muitas vezes não tem sido visto. Ações acertadas e integradas, segundo Andrés, poderiam praticamente eliminar o problema das chuvas em médio prazo, o que, a depender dos investimentos, poderia ser em torno de cinco anos.

“As chuvas estão cada vez mais fortes por causa do aquecimento global. Ou a gente investe em soluções de verdade, que não são simples nem baratas, ou daqui a um tempo vai ser pior. A tendência é que as chuvas sejam cada vez mais fortes”, diz Andrés. O ambientalista e professor da UFMG, Apolo Heringer, afirma que muito do que se vê atualmente são obras que simplesmente não resolvem o problema e que não respeitam a ciência, sendo que o problema começou há muitos anos, com a canalização de rios.

Um exemplo disso, segundo os especialistas, são as obras na avenida Vilarinho, na região de Venda Nova. A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) entregou em janeiro deste ano uma grande obra que prometia amenizar os alagamentos na região. Porém, a chamada caixa de captação no estreitamento do ribeirão Isidoro não resistiu ao grande volume de chuva e a água voltou a tomar conta da via, deixando pessoas ilhadas e carros debaixo d’água na quarta-feira (7).

A “bacia de captação” tem capacidade para 10 milhões de litros, o que, aparentemente, não foi suficiente para a forte chuva que caiu na cidade. Conforme a PBH, a estrutura tem o objetivo de “drenar o excesso de águas sobre as vias durante os eventos chuvosos mais intensos, reduzindo o risco de elevação da lâmina d’água na região e o tempo de permanência da água sobre a pista”.

Conforme Andrés, soluções como essa bacia, apesar de atenuarem o problema, não o solucionam, além de ser problemática. Isso porque quando não é época de chuva “é um grande buraco” que acumula lixo, segundo ele. Uma solução mais eficiente, para o especialista, seria ter várias ‘pequenas bacias’ distribuídas pela cidade. “Essa grande é muito problemática e não é a solução”, afirma.

Já a Prefeitura de Belo Horizonte alega que “embora seja uma obra muito importante e que melhorou muito a situação no local, a caixa de captação não tem capacidade para resolver sozinha os problemas da região em eventos severos de chuva tais como o ocorrido ontem (quarta-feira, dia 7).”

“Neste momento, estão em execução desde abril de 2021 as Obras e serviços de otimização do sistema de macrodrenagem dos córregos Vilarinho, Nado e Ribeirão Isidoro para a implantação de dois reservatórios profundos – Vilarinho 2 e Nado 1 – e mitigação das inundações recorrentes na av. Vilarinho e rua Dr. Álvaro Camargos. O investimento R$ 124,6 milhões com recursos financiados pela Caixa Econômica Federal. Os dois reservatórios subterrâneos têm capacidade de armazenamento de aproximadamente 115 milhões de litros d’água cada um, incluindo a laje de cobertura. Previsão de conclusão 1º semestre 2024”, justifica.

O professor do departamento de Geografia da UFMG, Diego Macedo, detalha que o volume de chuva registrado na última quarta foi incomum, além de ressaltar que é relevante pensar em soluções mais duradouras. “As chuvas variam e, de tempos em tempos, temos algumas que fogem na normalidade e que não são passíveis de previsão, que foi o caso de ontem (quarta). Quando se faz estes projetos de contenção, como o da Vilarinho, são feitos estudos hidrológicos e se espera que ele ‘aguente’ uma chuva por um determinado tempo. Mas esta é uma solução considerada de curto a médio prazo e, o ideal, é pensar em soluções a longo prazo”, argumenta.

O especialista lembra que, para formar o seu trajeto, um rio evolui por milhares de anos e, quando você o “urbaniza”, normalmente com concreto, ele deixa de funcionar como deveria. “Seria preciso mudar um pouco a forma que as casas são construídas, ter áreas mais permeáveis. Hoje existem várias novas ideias que vêm sendo pensadas, mas pouco implementadas, como os telhados verdes, jardins de chuva, trincheiras de infiltração forçada, que são mecanismos que ajudam nesse processo. Se você fizer em uma casa, não vai ter efeito, mas se fizer na maior parte das construções teremos um efeito sinérgico que vai reduzir a velocidade que a água vai chegar no leito do rio”, acrescenta Macedo.

Cristina Augustin também cita a possibilidade de liberar a chamada “planície de inundação”. “Em alguns lugares já foi feito isso, que é reformar o leito ao mais próximo do que seria o natural, é uma tendência de não canalizar os rios, transformar em parques, jardins, inclusive com a retomada da cobertura vegetal, matas ciliares. Você reconstitui o ecossistema. Mas isso demandaria uma desapropriação em massa, então, apesar de ser o ideal, pegando a realidade de BH, com mais de 2 milhões de habitantes, sabemos que é utópico”, garante a professora.

Avenida Bernardo Vasconcelos
Outro ponto muito impactado pelas chuvas, a avenida Bernardo de Vasconcelos, na região Nordeste da capital mineira, amanheceu na quinta-feira (8) com os moradores do entorno contabilizando os prejuízos provocados pela enchente. Lixo, entulho e árvores arrancadas faziam parte do cenário. Até mesmo uma banca de jornais, que havia sido instalada horas antes na via, acabou completamente destruída pela força da correnteza.

Morador da avenida, José Henrique Silvestre, de 61 anos, explicou que as inundações do córrego Cachoeirinha acontecem praticamente todos os anos durante o período chuvoso. “Ele foi encoberto de concreto no início da avenida e, aqui, perto do encontro com o córrego que também corre embaixo da Cristiano Machado, está a céu aberto. Se cai uma chuva destas às 18h, numa sexta-feira véspera de Natal, com o trânsito travado, vão morrer muitas pessoas dentro dos carros”, alerta.

Ainda conforme ele, esta sequer foi a pior chuva registrada na região, já que, em 1999, um temporal fez com que a água chegasse a invadir o shopping existente no local. “Muitos lojistas quebraram. Então você vê que isso vem se desenrolando há 27 anos. Nos nossos prédios (dos moradores da avenida) a água não entra, mas a água vai para o bairro de pessoas mais pobres e, então, vai morrer gente todo ano”, protesta Silvestre. 

O problema dos rios concretados citado pelo morador é confirmado pela professora do Departamento de Geografia da UFMG, Cristina Augustin, que detalha que, sem escoamento natural do solo, a água ganha mais velocidade, o que favorece o problema. Segundo ela, o transbordamento ocorre sempre no ponto mais baixo do corpo d’água, na chegada do afluente em outro rio.

“Já com um volume muito grande de água, ele encontra o rio principal que também já está cheio e a tendência é transbordar. Foi uma chuva muito forte em um período curto, e, o problema, é que com as mudanças climáticas isso deve ficar cada vez mais recorrente. Não teremos maiores volumes de chuva em um ano, mas sim um volume muito grande em uma velocidade muito rápida, causando eventos catastróficos”, explica a especialista. 

Anos sem solução
Todos os anos, Silvestre e outros moradores da região da avenida Bernardo Vasconcelos produzem vídeos dos alagamentos e os apresentam às autoridades para cobrar soluções, infelizmente, em vão até o momento.

“Em 2019, estive na Comissão de Segurança da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), conversei com o deputado Sargento Rodrigues (PL), apresentei as imagens. Na ocasião, eles disseram que o ministro das Cidades visitaria o bairro ainda naquele ano, mas estamos esperando até hoje”, reclamou. A reportagem procurou o deputado estadual e o ministério, mas, até o fechamento da reportagem, eles não haviam se posicionado sobre o assunto.

No mesmo ano, o então prefeito de BH Alexandre Kalil (PSD), que prometeu “atacar” em seu segundo mandato pelo menos dois pontos que normalmente eram palco de tragédias em dias de chuva na capital mineira, anunciou um projeto completo de intervenções na avenida com orçamento de R$ 150 milhões. “Nós temos nove pontos de ataque na cidade. Se deixarmos dois prontos, (dos) que durante 40 anos mataram gente em BH, se o próximo prefeito fizer mais dois e o outro mais dois, em 12 anos BH não inunda mais”, afirmou o político na época.

Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte afirmou que a canalização do córrego Cachoeirinha ocorreu nos anos 60/70 “nos quais prevaleciam outras concepções construtivas e uma forma de diferente de se pensar a relação homem x natureza. O crescimento das cidades e o aumento da frota automotiva gerou a necessidade de ocupação de mais espaços urbanos. Na tentativa de trazer mais mobilidade e espaço para os carros trafegarem, cidades do mundo inteiro canalizaram e soterraram seus rios sem avaliar as consequências em longo prazo”.

A Prefeitura ainda afirma que no início da década de 2000 propôs o Programa de Recuperação Ambiental e Saneamento dos Fundos de Vale e dos Córregos em Leito Natural de Belo Horizonte, com objetivo de implementar ações de melhoramento ambiental. “O objetivo geral do Programa DRENURBS é o de promover a melhoria da qualidade de vida da população do Município de Belo Horizonte, através da valorização do meio ambiente urbano por meio da recuperação e preservação de seus recursos hídricos”, diz.

“Atualmente, estão em andamento estudos para reformular o projeto que havia para a avenida Bernardo Vasconcelos. O projeto anterior não será totalmente descartado e foi necessário fazer estudos de novas técnicas e sistemas construtivos mais modernos com o objetivo de determinar diretrizes que atualizem o projeto existente. Os novos estudos irão contemplar três soluções alternativas que devem atender às novas diretrizes do atual plano diretor e estar dentro de critérios de viabilidade financeira para a execução pela administração pública. Os recursos já captados para as intervenções no córrego Cachoeirinha estão assegurados e serão usados para executar a obra quando o novo projeto estiver concluído”, afirma.

Diante de todos os problemas e das soluções que muitas vezes não o resolvem, o ambientalista e professor da UFMG, Apolo Heringer, conclui a questão fazendo questão de tirar a “culpa” da chuva. “Não foram as fortes chuvas que causaram destruição e morte. As chuvas são bênção” diz e acrescenta: “A chuva revela as mazelas das obras humanas”.

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